Gravidez - a aproximação à nossa mãe
Muito leio e me falam sobre o facto de vir a ser mãe e isso fazer com que comece a observar com outros olhos e outra compreensão a minha própria mãe.
Durante as aulas de preparação para o parto (aquelas das quais desisti), falaram das alterações fisicas e psicológicas que se sentem durante as várias fases da gravidez. Uma delas era essa mesmo: o facto de nos tentarmos aproximar da nossa mãe para podermos criar, nós próprias, o nosso modelo de ser mãe. Falaram nisso como se fosse um dado adquirido que, a partir deste momento, entendessemos tudo, vissemos tudo com outros olhos, nos esquecessemos do que é ser filha e passassemos a ver tudo com olhos de mãe e na perspectiva de mãe. Não pude concordar. Falaram que, neste momento, se atritos existissem do passado, eles seriam resolvidos. É um facto que no início da gravidez me tentei aproximar mais da minha mãe. Tentei porque realmente a queria entender, porque realmente preciso de um "modelo de mãe" para me orientar a criar o meu próprio modelo e aproximei-me para entender. Entender o que é ser mãe, entender como se deve ser mãe, entender como pensam as mães, e entender o porquê daquelas atitudes que, até hoje, não entendi. E digo bem, até hoje.
O facto é que essa minha tentativa de aproximação a única coisa a que levou foi a que ficasse a sentir-me triste, a que pensasse eu não quero seguir este modelo, e a que não entendesse. Nem tentando pensar "como mãe". Porque não me parece que pensar como mãe tenha de ser algo egoísta. Não me parece que ser mãe signifique achar que se sabe tudo e não aceitar que os filhos sejam pessoas com pensamentos próprios que podem ser muito diferentes dos nossos. Não é esse modelo de mãe que quero ser.
Fiquei a sentir-me culpada por achar que tenho maus sentimentos e pouca compreensão para com a minha mãe, mas, acima de tudo muito triste por não ter conseguido entender. Eu tentei. Lembro-me que o fiz por duas ou três vezes, logo no início da gravidez. Tentei afastar os "fantasmas" do passado e resolver as coisas para me sentir em paz com a minha mãe e poder compreender o modelo de maternidade que eu poderia vir a seguir. Mas tudo o que isso levou foi a uma série de acusações por eu ter deixado, um dia, de ser criança e ter passado a pensar por mim. Levou a uma série de acusações em como eu "não gosto dela". Eu tentei entender. Talvez até tenha conseguido, mas o que entendi e o que percebi não foi o que procurava e o que queria saber. Entendi que não há entendimento entre mim e a minha mãe porque ela não aceita que as pessoas pensem por si, que tenham vontades, que tenham ideiais e ideias diferentes dos dela, que olhem para o mundo de forma diferente, que gostem de morar em sitios diferentes, que gostem de vestir coisas diferentes, que se interessem por outros assuntos. Ela não entende e não gosta das pessoas diferentes dela. Cheguei à conclusão que, não fosse ela minha mãe, e sei que não gostaria de mim porque eu sou uma pessoa que "não se interessa", que "não está a fazer nada no mundo" apenas porque não quer saber o que o vizinho do lado comeu ao pequeno-almoço, ou porque é que o José Castelo Branco se vestia de mulher (claro que aqui estou a exagerar um bocadinho... ela interessa-se por outros assuntos, até interessantes, mas que a mim pouco me dizem ou não me puxam tanto interesse).
Fiquei triste com esta tentativa de aproximação porque cheguei à conclusão que o modelo de mãe da minha mãe não me interessa no seu todo (há uma ou outra parte importante, mas de há muito muito tempo. Do tempo de criança) o que me leva a tentar procurar outro. Mas não tenho outro. Pelo menos não o tenho assim tão perto.
Fiquei ainda mais triste ao lembrar-me do meu pai que já morreu. Porque ele poderia ser outra referência. Tentei lembrar-me de tudo e saber o que "posso aproveitar" da educação que me deu. Encontrei algumas referências. Algumas que sei que irei aproveitar. Algumas que sei que foram boas, outras considero-as demasiado "violentas" para as aplicar à Beatriz.
Tentei apaziguar-me e pensar que estava a exagerar. Afinal eu cheguei à idade adulta viva e de boa saúde. Mas não é bem verdade. A verdade é que passei uma infância relativamente boa. Mas também é verdade que o "respeito" que tinha pelo meu pai era incutido pelo medo e nada mais. Fui uma criança muito bem educada, a quem podiam levar a qualquer lugar. Não gostava que a minha filha viesse a ser muito bem educada por ter medo. Gostava que fosse bem educada por respeito, por entender, por perceber como as coisas funcionam. Sei que a dada altura isso passou a acontecer comigo (não vivi num permanente terror, nem fui espancada permanentemente), mas também sei que tudo começou pelo medo. Não quero isso para a Beatriz.
Mas a infância passou-se e consigo guardar muito boas recordações da mesma. Por isso, mesmo o "medo" que me incutiram, não há-de ter sido assim tão grave que me tenha traumatizado e umas palmadas de vez em quando são necessárias e não fazem mal a ninguém.
O meu grande problema está a partir da adolescencia. O meu pai passou a estar ausente. Quando estava presente tentava "compensar" a ausencia. Essa compensação, para ele, passava, não por dar amor e carinho às filhas, mas por "educar". E educar neste caso era impor disciplina a qualquer custo. A minha mãe viu-se, de repente, com uma filha adolescente e uma na pré-adolescência. E sozinha com elas duas. Entendo que para ela tenha sido difícil. Mas para nós não o foi menos. Passou a não nos aceitar como éramos. Passou a tentar impôr as ideias dela de uma forma brutal. A única coisa que conseguiu foi afastar-nos e criar ódios. É verdade, odiei a minha mãe nessa altura. Porque ela não fazia um esforço para entender que também a nós todas as mudanças que estávamos a viver nos custavam, se calhar mais do que a ela. Foram demasiadas mudanças para mim com onze anos. Vi-me a mudar de casa, de terra, a ter todos os meus objectos pessoais encaixotados (até hoje porque entretanto cresci demasiado para os ir desencaixotar quando chegou a altura), mudaram-me de escola metendo-me num colégio de freiras onde até a língua base que estava a aprender mudou (de inglês que tinha aprendido no 5º ano, para um francês de 6º ano). Acabei por ficar sem a minha casa, os meus brinquedos, o meu quarto, os meus amigos, o meu mundo. E, principalmente nessa idade, o nosso mundo é tão importante. Na altura eu só pedia que não me mudassem de escola, até porque a antiga ainda continuava a ser a que estava mais perto da nova casa. Mas a minha mãe não concordou porque eu tinha de ir para o colégio das meninas ricas. Porque "é onde andam todas as meninas ricas" da terra para onde íamos morar. Eu estava a borrifar-me para as meninas ricas. Queria era manter algo meu. Acabei por conseguir voltar para lá, a meio do ano, porque o meu pai achou melhor. Pelo menos isso.
Mas a partir dessa data nunca mais me dei bem com a minha mãe. Tive uma adolescência sufocada porque não ma deixaram viver. Vi uma tentativa de suicidio da minha irmã exactamente pelo mesmo motivo e pensei que não queria chegar a esse ponto. Não cheguei. Mas para isso anulei-me enquanto pessoa para poder viver em casa dos meus pais, pensando sempre no dia em que iria de lá sair. Aconteceu quando fui estudar para longe e, como devem imaginar, nessa fase decidi viver tudo o que me tinha sido vedado até então. Fi-lo, claro, de forma exagerada em sem conta, peso e medida. Não, não quero que a Beatriz um dia venha a ser uma pessoa como eu. Como eu fui. Não quero que ela sinta as mágoas que eu senti, que tenha as dúvidas que eu tive, que se anule por eu não a deixar florescer. Sei que deve ser muito bonito ser mãe de um bebé e de uma criança. Deve ser fabuloso ter alguém que nos ama incondicionalmente e não põe em dúvida a nossa forma de viver. Deve ser um choque quando essa mesma pessoa passa a pensar que quer uma vida diferente e uma maneira diferente de lidar com as coisas. Deve ser terrível o medo que entre em caminhos maus, que se magoe, que a magoem. Acredito que a vontade de proteger por vezes leve a cometer erros. Mas, de todos os erros, não quero cair no erro de não respeitar a minha filha enquanto pessoa autónoma com pensamentos e vontades próprias e de não saber respeitar o seu crescimento natural, por muito que me custe sentir que a estarei a "perder". Porque se perde mais quando se tenta prender. Perde-se o amor, perde-se o respeito, perde-se a "crença".
O meu problema agora é que, com tudo isto, acabo por não ter um modelo de mãe para seguir. Tenho de criar o meu próprio modelo e isso assusta-me. E se estou errada?
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